A realização da festa conjunta entre Adufu, UFU e Baiadô contou com investimento de tempo e recursos de cada entidade envolvida, com maior ou menor adesão de seus membros integrantes. Muita expectativa, muito trabalho e pouco diálogo sobre a idéia do que queríamos realizar acompanharam vários dias de dedicação de, aproximadamente, vinte pessoas na produção da nossa festa. As reuniões agendadas pelo Baiadô para discutir sobre a concepção do trabalho cênico em processo de criação não se realizaram, essa ausência foi entendida como confiança dos parceiros na autonomia do Baiadô quanto a criação do espetáculo e a coordenação de palco. No processo de produção da festa conflitos surgiram e foram sanados com a troca de informações escritas sobre as ações e necessidades percebidas por diferentes integrantes da equipe.
Alegria e entusiasmo temperaram as atividades e muitos agradecimentos devem ser feitos. Mas alguma indignação com a falta de apoio institucional também contribuiu com o sabor de nossos atos. Seria interessante ouvir os atores envolvidos na realização da festa para uma avaliação institucional, elogios, críticas e sugestões, mas esta carta tem outro objetivo, refletir sobre a concepção de cultura na universidade. Passados os obstáculos e reunidas as forças, a festa ficou muito linda. Muitas flores, bandeirinhas, palco iluminado e enfeitado de chita, folhas de coqueiro e de bananeira, arcos de bambu e mesinhas com forro decorado criaram um ambiente de aconchego e capricho. O levantamento do mastro iniciou a festa com uma celebração animada.
No correr da festa configurou-se, entretanto, um desentendimento sobre o sentido da cultura na universidade, demonstrando um desconhecimento sobre a estrutura e fundamento do trabalho do Baiadô. O Baiadô é um grupo de pesquisa e prática das danças brasileiras, que associa o ensino, a pesquisa e a extensão em todas as ações que faz. Trabalhar com festa, dança e música na perspectiva de inclusão sócio cultural e do estabelecimento de diálogos entre as diferenças é parte da pesquisa docente e discente, de projetos de extensão integrados a programas institucionas e da formação de estudantes e de outras pessoas da comunidade. A nossa festa foi realizada dentro dessas diretrizes.
A concepção de cultura que permeia a realização dos eventos dos quais o Baiadô participa valoriza o diálogo por meio da criação em arte com o objetivo de aproximar realizadades diferentes, perseguindo a utopia de uma sociedade igualitária e solidária. A universidade é entendida como um espaço privilegiado para a realização deste diálogo. O Baiadô preparou para na nossa festa o resultado de um trabalho de pesquisa em criação cênica1. A construção de uma narrativa teatral em torno do tema dos três santos juninos agregava grupos moradores de bairros de pouca concentração de renda, no caso, Morumbi, Tibery e Canaã2, e fortalecia laços familiares de integrantes do grupo. A proposta desenvolvida deu autonomia para três mulheres do grupo criarem cenas que integrassem as expressões de seus filhos e maridos. Essa ação fortaleceu e valorizou o gênero feminino historicamente desempoderado em nossa sociedade. Essas mulheres, Juliana, Maíra e Fernanda, com o apoio do grupo Baiadô, coordenaram a criação das Operetas para os Três Santos e foram chamadas na divulgação da festa de Talentos Fantásticos, numa leitura livre e lúdica da cultura popular regional. Em Serra do Salitre há um terno de congo denominado Vilão Fantástico da Serra do Salitre que inspirou essa brincadeira séria do Baiadô, desenvolvida para nossa festa.
Esse processo de tecitura cultural realizada no Baiadô, denso e divertido ao mesmo tempo, estava em processo de amadurecimento quando fomos convidados a nos reunir à Adufu e à UFU numa festa única: a nossa festa. Somou-se à concepção cênica, por indicação da ADUFU, a banda FazSuá, recebida com alegria pelo Baiadô, pois foi ótima parceira na festa junina do ano passado, e assimilada na concepção da opereta como a constante do espetáculo. As cenas de nossas mulheres talentosas foram planejadas para serem apresentadas em intervalos da apresentação da FazSuá, em ações interativas. Entretanto, problemas técnicos e imprevistos dificultaram a realização do espetáculo. Naldo não pode comparecer ao ensaio marcado por questões pessoais, houve falta de estrutura técnica de som e o horário do transporte dos grupos forçou a mudanças no plano de ação, cabe lembrar que os grupo ficaram responsáveis pelo seu próprio transporte, conforme encaminhamento de nossa produção.
Na concepção criada pelo Baiadô, a Faz Suá seria a presença constante do palco entremeada de cenas inusitadas, como as danças dos Orixás e a carroça cor de rosa, que apresentavam numa narrativa poética e de livre associação o universo cultural das famílias de Fernanda, Juliana e Maíra. Aconteceu, então, um tensionamento, campo possível nas ações de integração de culturas diferentes. Comum nas ousadias do Baiadô que leva para a universidade as criações culturais periféricas. Entretanto, no bojo desse tensionamento surgiu forte o desentendimento da concepção de cultura na universidade agravado pela falta de diálogo sobre a concepção da festa.
O Baiadô na nossa festa desenvolveu seu papel de animador cultural ao mesmo tempo em que cultivava e mediava as relações entre artistas profissionais e amadores, universidade e periferia, adolescência e maturidade, culturas popular e acadêmica. Situação que exige criatividade e improvisação para a superação dos limites técnicos e relacionais. Nesse contexto, a fala dos parceiros (ADUFU, UFU) se fez queixosa e se fundamentou na relação comercial estabelecida com a FazSuá. A banda de Naldo ficou pressionada entre a necessidade de cumprir o contrato e a proposta cênica do Baiadô, mas gentilmente adiou um pouco sua apresentação por entender a necessidade dos grupos convidados de se apresentarem mais cedo causa do transporte. A concepção inicial, de entremeios entre banda e cena, não tinha possibilidade de ser realizada. Optou-se por apresentar as cenas que contavam com os grupos convidados, deixando para depois do show da FazSuá as cenas em que se apresentavam as famílias do grupo Baiadô. Toda essa mobilização acontecia atrás do palco, a festa corria tranquilamente, o público se aglomerava em torno do espaço cênico curioso com as atrações do Baiadô e desejosos do baile da FazSuá.
O atraso da festa agravou a situação nas coxias, o horário para a finalização de atividades festivas na UFU apontava a inviabilidade de apresentar todo o evento programado. No tecido cultural que se fazia na festa entravam as queixas dos pagantes da banda do Naldo, o choro de crianças vestidas de Santo Antônio e de boneca de pano e a revolta de adolescentes que se sentiam menosprezados ao ser deixados para o final. Instaurou-se um clima de intolerância atrás do palco. Entre emoções, queixas, frustrações, fios elétricos, dança e música uma garrafa é jogada no palco concretizando o conflito. Naldo interrompeu a apresentação da FazSuá, apesar do apelo do público, e o Baiadô interrompeu a opereta, adiantando a finalização da festa num clima de insatisfação. Numa ação profissional e inesperada, Maíra e seu companheiro assumiram a cena cuspindo fogo e finalizaram a apresentação com uma cena de pirofagia. Numa leitura otimista dos fatos a cena trouxe a idéia simbólica da transmutação por emio do fogo purificador.
Com essas palavras, muitas para serem lidas e poucas para construir um entendimento aprofundado sobre cultura na universidade, espero ter esclarecido os motivos que levaram às ações da coordenação de palco no decorrer da festa.
Agradeço a todos os que participaram da realização de nossa festa, em especial à Dila que esteve corajosamente à frente dos trabalhos, e peço desculpas pelas minhas falhas.
Atenciosamente,
Renata Meira
1Com bolsa de iniciação científica e reconhecimento do PEP/PROPP.
2Parte das ações do projeto desenvolvido no Programa Institucioanal de Formação Continuada em Educação, Saude e Culturas Populares, com estagiáro remunerado em extensão.
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